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terça-feira, dezembro 13, 2011

Bondinho 113

Cristina da Costa Pereira




Curvas, tilintares, cheiros e cores
mescla de sentidos
quase um transporte alado
revela sinuoso pelos trilhos
pernas, dorsos, bocas e casario antigo.

E que delícia de paquera
quando cruza com um outro bondinho!

Ah, lá vem ele
música pros ouvidos
ritmo pro coração
às vezes, solta fogo pelos fios.

Passeiam pelos meus olhos
o lirismo de Vicente Maiolino, a graça de Mavy no
La Vereda, a Ângela do Mineiro,
restaurantes e botecos, um ectoplasma
transformado em Dinorah e o tremor quebradiço
de sua sanfona, a luz de Renan Cepeda
Convento das Carmelitas, Chazinho, poesia e Carnaval
Marcílio Barroco das Neves, a linda Violeta,
minha brilhante ex-aluna, um filho em cada quadril,
bancos de praças, cachorros vira-latas,
profusão de jasmineiros, trepadeiras transgressoras,
a Telma da Cassiano (lembrança de Jorge Rodrigues),
uma corte de damas da noite, a oficina do Getúlio,
a sutileza da Tizuko, a Sonia Abayomi,
Valter “Nijinski” Rodrigues, o glamour da Sonia Otero,
surdos e cores da Delfina, cantiga da Cláudia Ferrari,
aceno do Arnaudo (lembrança do Farah),
pandeiro do Fabinho, o umbigo enterrado da Tânia
no solo sagrado de Santa Teresa, as diáfanas
costuras da Rita, o bailado dos meninos no estribo,
o tai-chi da Ilma, os anjos da Jemile
(lembrança de Manuel Bandeira),
Paulo e Sérgio em sambalanços coletivos,
Dolores e sua sangria, a arte alquímica da Cristina Felício,
ponte Rio-Niterói, o relógio da Central, o violão da Regina.

A Lapa lá embaixo Tá na Rua
e a baía de Guanabara derramada.

Um gato passou correndo
na rua Joaquim Murtinho
talvez seja o da Martha Pires,
aquele que vive fugindo.

Viro o rosto pro outro lado
e vejo em xale a Ana Lúcia
entrando no Alto Lapa Santa
os orixás, em seguida.
Dou tchau pras Velhinhas de Santa
que vinham do bar do Serginho
pra Estação do Curvelo
ouvir o Panela di Barro
tocar o seu samba rasgado
e algumas canções brasileiras.

Na altura do Guimarães
chegam música do Marcô
cheiro de sonho da padaria
Rosa, Pessoa e Lorca,
na cola de Florbela Espanca
voando do Largo das Letras
pra boemia das ruas:
versos sobre os meios-fios.

O bonde segue pro Silvestre
onde a cidade fica inteira
aos pés de Santa Teresa.
Lá bebe-se água da fonte
 e as matas dos caboclos
penetram em nossas retinas.

Na virada dos bancos
pegam o bonde Cris dos Prazeres
a militante Dionysa Brandão (lembrança de Laura e Otávio)
direto da Equitativa
e voejam o manto coral
e o pólen de alguma essência
de um cálido monge budista
meditando com Antonio e Heloísa.

Volta o bonde ao Guimarães
passando pela Caixa d’água
aparição de Nelson Xavier
lá no alto da sacada,
ares do Largo do França.
Um primo-irmão do bondinho
transita na Vila Suíça (uns chamam de
Vila Jardim Santa Cecília).
E o bonde segue seu caminho:
Castelo do Valentim
Teresa que virou Térèze
Cadê o antigo Correio?
Tinha até sino na porta!
E a Folha de Santa Teresa,
porta-voz dos moradores
e tributo à poesia?
Também não existe mais
aquele armazém da esquina.

E nessa ciranda onírica
me transporto a outro bonde
coleando pro Largo das Neves.

Logo, logo, a biblioteca
pelas janelas de vidro
onde os estudantes leem
Cecília, Lobato, Quintana
e histórias em quadrinhos.
Rouba-me o olhar em rosa e jardins
o Centro Cultural Laurinda:
arte, celebração, comunidade
encontro com os amigos.

Virando a Monte Alegre
o Luisão e a Cristina
saem do Gomez e fazem batuque
em todo terreiro que avistam.

Trabalhando que só ela
na mão um pano de prato
na outra um copo de vinho
mando um beijo pra Fatinha
cerveja, noite de lua e petiscos.
Mas nessa parada
o bonde também tem saudade
da ginga do Robertinho.
“Ô moço, cadê o meu traçado?”

Tal qual Teresa de Ávila
levita, levita, bondinho
perfil inclinado pra Oriente
do mais belo pôr de sol do Rio
onde namoro várias ruelas.
E lá vai um galinho garnisé
batendo asas de uma casa simples
a dona a correr-lhe atrás
alguns marrecos em fila.

Tem também o roseiral
na casa que foi escola um dia.
Já sei, a arara do Vovô não está mais lá
habita etéreas paragens
mas, de fato, ainda ouço
seu metálico trinado
que ouriçava meus filhinhos,
lancheiras arrastadas, joelhos encardidos
vindos do Colégio Tomás de Aquino
(lembrança da Djanira).

Chegou a igreja das Neves.
Acesa! É noite de quermesse!

Não adianta!
Quando viajo no bonde de Santa Teresa
não vejo balas perdidas
nem ouço o tiroteio dos morros
não sei de ganho aos turistas
pelos pivetes ariscos
que fogem pela Portinha.

Sequer o roubo de um carro
naquela rua ali, ó Cristina!
Nunca ouvi falar do menino
que perdeu o pé direito
quando caiu do estribo
e o bonde passou por cima
seus livros de escola caídos.
E há pouco a professora morta
numa batida com o ônibus
e um táxi fugitivo,
uma história de freio sinistra.
Às vezes é uma ferida aberta, a vida.

Nada de assaltos-relâmpago
a deslumbrantes mansões
em plena luz do dia.

Pelo meu bondinho não passam:
crimes escabrosos, histórias de estupros,
acertos de conta, queimas de arquivo
e outras drogas.
Isso deixo pra Polícia
e pro Caderno de Notícias.

É outra a minha matéria,
ela é feita de fios de sonhos.

Mas afinal, vizinhos,
o que é um poeta sem seus sonhos?


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