Fernando de Castro
Prometi não falar mais de cigarro. Pega mal. Parece apologia. Também já prometi tentar parar de fumar. Ainda nem tentei. É sabido que o cigarro é o pior de todos os vícios. Falar de cigarros talvez seja o segundo pior, hoje em dia. É difícil soprar a fumaça a seco, fuzilado por olhares saudáveis, sem poder contra-argumentar com qualquer coisa positiva. O cigarro fede às narinas evoluídas, e não adianta forjar considerações que ressaltem a noção de aroma. Não existe safra de tabaco. Ninguém pede um maço de Marlboro vermelho ano 63. A fumaça escurece pulmões alheios. Somos assassinos de nós mesmos e de uma legião de futuros triatletas. O estado de acuamento é quase justo e reforça a impressão de que não duraremos muito tempo. Todo cigarro tem sabor de último cigarro. Nosso destino é a extinção, assim como aconteceu com o Minister Extra Mild e a ética petista.
Comecei a fumar em 1996. Foi um ano e tanto para o Brasil. O frango virou herói nacional. FH nos chamou de caipiras. Morreram Renato, Russo, Mamonas Assassinas e PC Farias. Maluf elegeu Celso Pitta prefeito de São Paulo. Em Ipanema, a moda eram os apitos nas rodas em que se fumava maconha, para avisar que a polícia se aproximava. Não me lembro do meu primeiro cigarro, mas sei que não foi em Ipanema e que ainda não se fazia necessário usar um apito antes de acendê-lo. Não era caso de polícia.
O início dos anos 2000 pareceu uma época extremamente promissora para os novos tabagistas. Mal sabíamos que era o apagar das guimbas. Na Alemanha, fumava-se até em supermercado. Em Barcelona, em bares como o delicioso Oveja Negra, provocava-se: “Aceitam-se não-fumantes”, dizia a placa, numa versão bem mais politicamente incorreta do que a dos cafés portugueses da Ribeira, no Porto, onde as placas acusavam a proibição de se estudar no local. Foram nossos anos JK. Devíamos ter previsto que a dívida que nos esperava seria praticamente impossível de pagar.
Certa vez o Zuenir, com toda a sua elegância, ao me ver acendendo um cigarro, sugeriu que eu fazia besteira. O Zuenir sabe das coisas. Tentei ser espirituoso, que é a forma mais honrada de se falar asneiras e justificar fraquezas. Disse que apostava na medicina. No fundo, fazia um bem para a sociedade. A ciência precisava de tipos como eu. Só assim alcançaríamos a cura para as doenças potencializadas pelo consumo do cigarro. Não pretendia uma placa ou estátua quando esse dia chegasse. Nada de monumentos em homenagem ao fumante desconhecido. Tragava pelo bem da humanidade. Eu era assim, um abnegado. Zuenir riu. O Zuenir é um ex-fumante elegante.
O golpe definitivo contra nossa espécie foi essa lei que proíbe o consumo de cigarros em cafés, bares, restaurantes, farmácias ou qualquer outro estabelecimento que venda produtos de necessidade fundamental ao ser humano, como café, chope, bife à milanesa e desodorante. Foi o primeiro passo rumo a nossa anti-sociabilidade definitiva. Nosso prazer hoje está nos pequenos momentos. Aqueles em que nos vemos autorizados a desviar da lei, com a conivência indireta dos nossos inimigos – ou seja, os não-fumantes inveterados, a espécie que mais cresce no Brasil.
Meu único grande momento se deu há algumas semanas. Teve como palco um dos melhores cafés-restaurantes-livrarias da Zona Sul, cujo rigor da lei se faz enxergar nas diversas placas espalhadas por todas as suas dependências. Já recusava o endereço há algum tempo, pelo óbvio motivo de que não se podia mais fumar ali. Até que certa noite eu encontrei o Antônio Torres na porta. Chamou-me para um café, ao que fiz menção de recusar, mas o bom senso me avisou que um café com o Torres seria agradável até sem as necessárias doses de nicotina que o líquido exige.
Casa lotada, mesa central, o Torres não tardou dois minutos para acender um cigarro. Esperei pela reação dos outros clientes, convicto de que as primeiras queixas não demorariam. Mal sabia eu do prestígio do grande escritor. Sempre que alguém acusava o gesto de irritação, espiava a origem daquela fumaça e, permissivo com o vício do autor de Meu querido canibal, recolhia-se ao seu prato, numa das maiores manifestações de respeito que já vi um não-fumante praticar. Foi lindo. Fui de carona, no prestígio do Torres. Fumamos à beça, feito dois Cunhambebes entre tantos colonizadores. E, contrariando toda história recém-escrita, saímos de lá como vencedores.
(Artigo publicado no Jornal do Brasil, em 18 de julho de 2006
Prometi não falar mais de cigarro. Pega mal. Parece apologia. Também já prometi tentar parar de fumar. Ainda nem tentei. É sabido que o cigarro é o pior de todos os vícios. Falar de cigarros talvez seja o segundo pior, hoje em dia. É difícil soprar a fumaça a seco, fuzilado por olhares saudáveis, sem poder contra-argumentar com qualquer coisa positiva. O cigarro fede às narinas evoluídas, e não adianta forjar considerações que ressaltem a noção de aroma. Não existe safra de tabaco. Ninguém pede um maço de Marlboro vermelho ano 63. A fumaça escurece pulmões alheios. Somos assassinos de nós mesmos e de uma legião de futuros triatletas. O estado de acuamento é quase justo e reforça a impressão de que não duraremos muito tempo. Todo cigarro tem sabor de último cigarro. Nosso destino é a extinção, assim como aconteceu com o Minister Extra Mild e a ética petista.
Comecei a fumar em 1996. Foi um ano e tanto para o Brasil. O frango virou herói nacional. FH nos chamou de caipiras. Morreram Renato, Russo, Mamonas Assassinas e PC Farias. Maluf elegeu Celso Pitta prefeito de São Paulo. Em Ipanema, a moda eram os apitos nas rodas em que se fumava maconha, para avisar que a polícia se aproximava. Não me lembro do meu primeiro cigarro, mas sei que não foi em Ipanema e que ainda não se fazia necessário usar um apito antes de acendê-lo. Não era caso de polícia.
O início dos anos 2000 pareceu uma época extremamente promissora para os novos tabagistas. Mal sabíamos que era o apagar das guimbas. Na Alemanha, fumava-se até em supermercado. Em Barcelona, em bares como o delicioso Oveja Negra, provocava-se: “Aceitam-se não-fumantes”, dizia a placa, numa versão bem mais politicamente incorreta do que a dos cafés portugueses da Ribeira, no Porto, onde as placas acusavam a proibição de se estudar no local. Foram nossos anos JK. Devíamos ter previsto que a dívida que nos esperava seria praticamente impossível de pagar.
Certa vez o Zuenir, com toda a sua elegância, ao me ver acendendo um cigarro, sugeriu que eu fazia besteira. O Zuenir sabe das coisas. Tentei ser espirituoso, que é a forma mais honrada de se falar asneiras e justificar fraquezas. Disse que apostava na medicina. No fundo, fazia um bem para a sociedade. A ciência precisava de tipos como eu. Só assim alcançaríamos a cura para as doenças potencializadas pelo consumo do cigarro. Não pretendia uma placa ou estátua quando esse dia chegasse. Nada de monumentos em homenagem ao fumante desconhecido. Tragava pelo bem da humanidade. Eu era assim, um abnegado. Zuenir riu. O Zuenir é um ex-fumante elegante.
O golpe definitivo contra nossa espécie foi essa lei que proíbe o consumo de cigarros em cafés, bares, restaurantes, farmácias ou qualquer outro estabelecimento que venda produtos de necessidade fundamental ao ser humano, como café, chope, bife à milanesa e desodorante. Foi o primeiro passo rumo a nossa anti-sociabilidade definitiva. Nosso prazer hoje está nos pequenos momentos. Aqueles em que nos vemos autorizados a desviar da lei, com a conivência indireta dos nossos inimigos – ou seja, os não-fumantes inveterados, a espécie que mais cresce no Brasil.
Meu único grande momento se deu há algumas semanas. Teve como palco um dos melhores cafés-restaurantes-livrarias da Zona Sul, cujo rigor da lei se faz enxergar nas diversas placas espalhadas por todas as suas dependências. Já recusava o endereço há algum tempo, pelo óbvio motivo de que não se podia mais fumar ali. Até que certa noite eu encontrei o Antônio Torres na porta. Chamou-me para um café, ao que fiz menção de recusar, mas o bom senso me avisou que um café com o Torres seria agradável até sem as necessárias doses de nicotina que o líquido exige.
Casa lotada, mesa central, o Torres não tardou dois minutos para acender um cigarro. Esperei pela reação dos outros clientes, convicto de que as primeiras queixas não demorariam. Mal sabia eu do prestígio do grande escritor. Sempre que alguém acusava o gesto de irritação, espiava a origem daquela fumaça e, permissivo com o vício do autor de Meu querido canibal, recolhia-se ao seu prato, numa das maiores manifestações de respeito que já vi um não-fumante praticar. Foi lindo. Fui de carona, no prestígio do Torres. Fumamos à beça, feito dois Cunhambebes entre tantos colonizadores. E, contrariando toda história recém-escrita, saímos de lá como vencedores.
(Artigo publicado no Jornal do Brasil, em 18 de julho de 2006
foto: www.diamang.com/diamang/Lunda/povo/ocupacoes/...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário